Não
importa quão necessária ou justificável
seja
uma guerra, ela será sempre um crime.
–– Ernest
Hemingway (1899-1961). |
De 1994 até os recentes acontecimentos policiais no Rio de Janeiro, o que mudou no cenário da segurança pública para os cariocas e brasileiros? – pergunto a ela em entrevista por telefone. "O que mudou? O que mudou é que houve um agravamento da situação, com presídios superlotados, violência e corrupção. Os atores do processo mudaram, mas no geral a situação está infinitamente mais grave", destaca Julita Lemgruber. "Os problemas hoje são os mesmos porque, nestes 20 anos, não houve nenhum presidente ou programa de governo voltado para a criação de um sistema penitenciário decente no Brasil", dispara.
"O que assistimos no Brasil é uma continuidade dramática do crime e da tragédia do sistema penitenciário, resultado de um desprezo histórico", destaca a socióloga. Ela explica que o projeto do livro começou quando ficou amiga de Anabela Paiva em 2004. Na época, a jornalista juntou-se ao grupo de pesquisas do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, dirigido por Lemgruber.
"Em 2008, tivemos a certeza de que da amizade poderia nascer um projeto que fosse além do trabalho de pesquisa. Daí até a publicação do livro foi um passo, mas um passo de muito trabalho e de muitas versões e tentativas", recorda. Julita, autora de obras acadêmicas, queria contar com sabor jornalístico as histórias vividas como diretora do sistema penitenciário. O resultado é "A Dona das Chaves", um livro que parece ficção, recheado de suspense e de reviravoltas dramáticas.
"Imagina o drama do policial que vai todos os dias às zonas de guerra e depois retorna de ônibus para casa e para a normalidade no final do expediente. Isso é muito surrealista", comentou Soares em entrevista por telefone, à vésperas de vir a Belo Horizonte participar de um debate sobre seus livros no projeto Sempre um Papo. Antes de falar sobre seu novo livro, Soares fez questão de destacar que não exerce nenhum cargo público e que há algum tempo trocou o gabinete pelas ruas.
Polícia & Ladrão: filmes do diretor
e roteirista Hector Babenco que se tornaram campeões de bilheteria. Acima, Pixote, A Lei do Mais Fraco, de 1981, e Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia, de 1977. Abaixo, o cartaz de Carandiru, de 2003, seguido por cena de Tropa de Elite 2 (2010), pelos cartazes de Notícias de uma Guerra Particular (1999), de Katia Lund e João Moreira Salles, e Cidade de Deus
(2002), de Fernando Meirelles e Katia Lund. Também abaixo, um manifestante em protesto na Cinelândia, centro do Rio de Janeiro, ergue cartaz pedindo mais educação e menos caveirão (nome que os cariocas deram para as viaturas blindadas da Polícia Militar, em fotografia de Daniel Ramalho. No alto da página e no final
do texto, registros da ocupação da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, em 2011, que mobilizou 3 mil policiais, em fotos de Marino Azevedo (ABR) |
Atualmente professor universitário, Soares tem aparecido na mídia quase sempre no papel de escritor: ele é autor de uma dúzia de livros de sucesso, entre eles "Meu Casaco de General" (Companhia das Letras), relato biográfico sobre sua experiência na Segurança Pública do Rio de Janeiro. Soares também divide com Cláudio Ferraz, André Batista e Rodrigo Pimentel a autoria de "Elite da Tropa 2" (Editora Nova Fronteira), destaque nas listas de mais vendidos. Combinação de literatura e jornalismo, é um livro difícil de definir, construído em diálogo com José Padilha e a equipe de "Tropa de Elite".
"São vozes narrativas muito próximas, que têm muito em comum, compartilhadas por dois projetos simultâneos que são os dois livros 'Elite da Tropa' e os dois filmes 'Tropa de Elite'. São obras em diálogo, mas obras distintas", explica Luiz Eduardo Soares, uma das maiores autoridades em segurança pública no Brasil. Sobre a parceria nos livros com Cláudio Ferraz, André Batista e Rodrigo Pimentel, e nos dois filmes "Tropa de Elite", nos quais divide o argumento com a equipe do diretor José Padilha, Soares diz que foi uma surpresa, mas comemora o sucesso. "No Brasil, de fato é um modelo pouco usual. Mas parece que deu certo e tem tudo para se repetir em outros projetos", reconhece.
"Este 'Nunca Antes na História Desse País' não será exatamente um documentário", revela Soares. "Será uma obra de ficção em diálogo com a realidade, com as liberdades narrativas que o cinema proporciona. Mas o projeto ainda está bem no começo", explica. O próximo livro também está com data marcada para chegar às livrarias. "Será a biografia de um traficante internacional que ganhou status de celebridade", diz Soares, que prefere não anunciar por enquanto o nome verdadeiro do biografado.
O sr. concorda que os dois livros "Elite da Tropa" e os dois filmes "Tropa de Elite" perseguiram os acertos de outros projetos, especialmente o documentário "Notícias de uma Guerra Particular" e a adaptação do romance "Cidade de Deus" para o cinema?
Luiz Eduardo Soares – Sem dúvida nenhuma. Os dois filmes que você cita podem ser tomados como antecedentes importantes do primeiro e do segundo "Tropa de Elite". Aprendi muito com o filme do João Moreira Salles e da Kátia Lund e adoro o livro do Paulo Lins, no qual o filme "Cidade de Deus", do Fernando Meirelles e da Kátia Lund foi baseado.
Concordo plenamente. O filme do João é muito especial, porque foi pioneiro ao trazer ao mesmo tempo a palavra do traficante do morro e a palavra do policial. Ele foi aos dois extremos naquele documentário. Já "Cidade de Deus", o filme, relata somente o universo do tráfico, enquanto "Tropa de Elite" vai em outra direção para encontrar o universo do policial. O filme do João mapeou os dois universos e os filmes que vieram depois seguiram com focos específicos.
O diretor José Padilha declarou que os protagonistas de "Tropa de Elite" lembram outros heróis da literatura que viraram sagas marcantes no cinema, como James Bond e Dom Corleone. A comparação é correta?
Não sei se concordo com a comparação entre "Tropa de Elite" e os filmes do Agente 007, mas com a saga de Dom Corleone a analogia é perfeita. Creio também que "Tropa de Elite", tanto o primeiro quanto o segundo filme, remetem a certos heróis do cinema como aquele de "Taxi Driver", do Martin Scorsese. Ou seja, são personagens fortes, incomuns, que comovem e fazem pensar, sem necessariamente ser um convite para que o público venha a adotar aquela visão de mundo ou aquele comportamento doentio. Não é este o papel da grande arte, representar e sensibilizar o público, sem forçá-lo a aderir a uma determinada atitude? A arte precisa ensinar, oferecer a possibilidade da experiência, precisa estabelecer um diálogo com o diferente. Arte é o aprendizado da tolerância.
Considerando a repercussão dos dois filmes e a importância do cinema como marco cultural e antropológico, qual é o lugar da saga "Tropa de Elite" como possibilidade de intervenção na realidade do cidadão brasileiro?
É uma questão difícil de responder. O fato é que os livros "Elite da Tropa" e os dois filmes "Tropa de Elite" conseguiram atingir alguns nervos e, ao mesmo tempo, passaram a fazer parte do imaginário de boa parte da população. Foi um sucesso imprevisível, até para nós que estávamos envolvidos no projeto desde o início. Tenho pensado muito sobre a dimensão política de tudo isso, que é inevitável.